O meu futebol de Rua
Reflexão dos anos 60
"A rua é a tecnologia de ponta do Futebol"
Jorge Valdano
Éramos miúdos entre os oito e catorze anos. Camarate era uma terra onde não havia praticamente trânsito, as camionetas de carreira (passageiros) passavam uma de manhã outra à noite. Pelo que não nos faltava espaço para brincar. Quer no largo da Igreja, quer na rua direita (Rua Avelino Salgado de Oliveira) no pátio da escola, na altura única onde hoje se situa o Bairro S. Lourenço, e mais tarde também o Campo dos Bombeiros, que com a bondade do tio Agostinho podíamos brincar. As nossas brincadeiras situavam-se no salto ao eixo, ao toque e foge, ao salva, ao pião e ao berlinde. No entanto havia uma brincadeira que nenhum de nós prescindia, o jogo da bola.
A bola era em princípio feita com uma meia cheia de trapos, e quando aparecia uma bola de borracha fazia a delícia de todos nós. As balizas eram feitas com pedras. As regras eram feitas por nós. E os jogos quase sempre mudavam aos cinco e acabam aos dez, o que muitas vezes levava a lutas renhidas para a conclusão do jogo. Normalmente os mais pequenos, como era o meu caso, que tinham de ir para a baliza. Como éramos quase todos pobres andávamos descalços pelo que regra geral os que tinham sapatos ou botas tinham que as descalçar para poder jogar. Não eram poucas as vezes que chegávamos a casa com os dedos todos esfolados. Quero com este meu contributo dizer que não havia interferência de adultos senão muitas vezes à assistir às nossas grandes contendas, incentivando e comentando, entre eles que um ou outro de nós seríamos mais tarde jogadores para o Clube da terra.
Não havia a presunção sequer de se falar em jogar no Sporting ou no Benfica. Embora alguns de nós o tenhamos feito nas camadas jovens dos clubes da Capital. Não tínhamos Quites caros de equipamentos com Chuteiras XPTO, mas não deixávamos de durante os nossos jogos de identificar-nos com elementos de cada equipa. Este é, em meu entender, o verdadeiro futebol de jovens. Não havia obesidade, porque muitos de nós também não tínhamos muito que comer, mas passávamos grande parte do tempo na rua a brincar e não como agora os jovens passam o tempo agarrados a computadores e outras tecnologias que sendo em excesso lhes vai trazer no futuro graves problemas de saúde.
Conclusões:
- O facto de jogarmos em espaços com irregularidades, como pedras, buracos, desenvolvia, em nós, uma maior capacidade técnica, pois não bastava ultrapassar os adversários directos, mas tínhamos sempre de contar com aquele ressalto inesperado que aparecia.
- O jogar com bolas de diferentes tamanhos, pesos e materiais, permitia-nos desenvolver uma maior sensibilidade proprioceptiva no pé, associado ao facto de jogarmos descalços. De facto a relação pé e bola era a mais natural possível, pois não era mediada por chuteiras ou meias.
- A ausência de adultos, de sistemas tácticos rígidos, permitia-nos desenvolver a criatividade, dar espaço ao "detalhe" individual, ao virtuosismo particular que cada um possuía. Dava-nos, ainda, a possibilidade se sermos nós a organizarmos o espaço de jogo, a introduzirmos a regras em função do espaço disponível, no fundo desempenhávamos ao mesmo tempo a dupla função de Atletas – treinadores.
- Para finalizar, gostaríamos que ficasse aqui vincado, que este artigo não pretende ser uma crítica à criação de escolas de futebol, pois estas se bem orientadas, poderão ter um excelente papel no desenvolvimento de atletas. Pretende-se, apenas, alertar para os grandes benefícios que a prática do Futebol de Rua, pode trazer a todas aquelas que ocupam os seus tempos de laser, correndo atrás de uma bola, pelo simples prazer de jogar.
Texto: António da Costa Pinheiro - Treinador de Futebol Nível II Pró UEFA / In: Academia de Talentos
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